Programa de extensão universitária cujo fim é informar, formar e estimular indivíduos e grupos sociais para o exercício do poder nos diversos campos da vida social latino-americana e caribenha (economia, cultura, arte, tecnologia, política), desenvolvendo o pensamento crítico analítico-sintético totalizante, suas capacidades transformativas de longo prazo, tornando-os capazes de criar objetivos estratégicos e os meios para alcançá-los em contextos tecnologizados e mundializados. Inventa-se o cais e os caminhos para alcança-lo, dirigindo-se “pro cais”.
Versão em litogravura do quadro O grito, de Edvard Munch, publicada em La Revue Blanche, 1895.
1.A angústia, a ansiedade e a exasperação nunca estiveram tão presentes no cardápio de sentimentos dos povos do Ocidente. Se é verdade que elas são emoções velhas conhecidas da humanidade, a novidade está na frequência, na intensidade e na amplitude da população que as sente. O sentimento permanente e difuso de insatisfação, a insegurança, a confusão generalizada da nossa época, adquiriram contornos dramáticos por total falta de perspectivas de futuro.
2.Não se cogita nem mesmo um futuro distante; o próprio presente nunca se mostrou tão confuso e incerto. Indivíduos e grupos sociais inteiros encontram-se sem saber que sentido dar às suas vidas, que decisões tomar ou rumo seguir nos cenários que se lhes apresentam.
3.Nesse instante, em todas as gerações – idosos, jovens, adultos –, a falta de horizonte já leva a uma situação de quase desesperança estrutural. Em todas elas os sintomas da falta de sentido e rumo, de dúvidas permanentes sobre que direção dar à vida individual e coletiva, confirmam a descrença no porvir: do desalento (pessoas aptas para o trabalho que desistiram de procurar trabalho), passando pelos assim conhecidos jovens “nem-nem” (porque nem estudam e nem trabalham), ao adoecimento mental generalizado em adolescentes e adultos; transtornos de ansiedade e depressão na casa de milhões de pessoas da população; sem mencionar a apatia da “aglomerada solidão” de indivíduos atomizados, do sentimento de solidão vivido diuturnamente e do aumento do número de suicídios.
4.Frente a este panorama de profunda fragilidade humana, abundam também as fáceis promessas ilusórias e os falsos gurus de toda sorte: de seitas religiosas a seitas políticas, passando pelas seitas comerciais, pirâmides financeiras e apostas virtuais. Todas as formas “milagrosas” de buscar algum sentimento de segurança no futuro e aplacar a angústia, a tristeza e a ansiedade do presente.
5.Com o tempo, as promessas vazias tornam-se evidentes, e a efêmera esperança esvai-se como quem desperta de um sonho e logo o esquece. Contudo, a angústia permanece resistente e latente, porque não se esquece, não vai embora. As promessas aparecem como miragens: quanto mais parece alcançar-se um “porto seguro”, logo ele se distancia ou se desvanece. E, mesmo quando se encontra um, seus cais já estão todos ocupados. É um circuito fechado: procura-se tanto, a ponto de nunca se encontrar e, de tanto não encontrar, não se procura mais.
6.Entretanto, frente a uma realidade que preocupa e ocupa toda nossa atenção à exaustão – desviando-a do que realmente importa – esquece-se de que novas perspectivas de futuro e objetivos de longo prazo não surgem espontaneamente. É preciso algum esforço para encontrar o sentido da vida, definir rumos e traçar novos horizontes. Embora a ansiedade, em níveis crônicos, possa ser prejudicial, ela também desempenha um papel essencial no sistema natural de alerta humano. Indica que algo não está bem – tanto em nosso interior quanto no ambiente – e exige uma ação decidida, uma atitude a ser tomada.
7.Em última análise, são os indivíduos e as coletividades, utilizando o mínimo recurso de que dispõem, que podem transformar suas próprias vidas. Ainda que não tenham tudo de que precisam – muito menos as condições ideais –, é possível, mesmo a partir de recursos limitados e do que está disponível, alterar e melhorar a situação, por mais difícil que pareça.
8.O exercício do poder, a habilidade e o conhecimento de transformar um problema impossível numa realidade possível é o que chamamos aqui de capacidades estratégicas. A arte e a ciência da Estratégia, a partir da qual se desenvolvem essas capacidades, é a forma consciente e criadora de fazer possível o aparentemente impossível. Por meio da Estratégia, criamos, por nós mesmos, não apenas o porto, mas também o cais – o espaço exato no porto que escolhemos. Com essas capacidades estratégicas, definimos o sentido, o rumo e os caminhos de navegação da vida. A incerteza e a ansiedade permanecerão sempre conosco nessa viagem. Porém, serão nossas companheiras, nossas amigas e conselheiras nos ajudando a permanecer no sentido correto “pro cais” escolhido.
9.Antes de apresentar, em maior detalhe, o PROCAES – programa que dá origem a essa plataforma digital e outros serviços – cabe apresentar a instituição que o oferece. Desenvolvido em uma universidade pública brasileira, a Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, trata-se de uma instituição estatal do povo brasileiro para toda a humanidade. Assim, trata-se de serviços oferecidos gratuitamente, sem nenhum fim de lucro. A missão da UDESC e do PROCAES é promover o desenvolvimento social e o bem-estar da sociedade por meio do conhecimento.
10.Para cumprir esta missão, a UDESC e o PROCAES utilizam uma das três funções da universidade: a Extensão Universitária. É amplamente conhecido pela população que a universidade produz ciência por meio de pesquisas, faz novas descobertas e forma os profissionais de que a sociedade precisa. A essas funções de pesquisar e ensinar, soma-se outra, menos conhecida, mas profundamente entrelaçada às demais: a tarefa de socializar o conhecimento diretamente com a sociedade. A extensão universitária desempenha o papel de compartilhar com a sociedade o conhecimento organizado e transmitido ao longo das gerações. Ela constitui, juntamente com as funções de ensino e pesquisa, o chamado tripé da universidade.
11.De maneira geral, pode-se afirmar que o ensino e a pesquisa são formas indiretas de a universidade contribuir com a disseminação de conhecimento. O ensino entrega conhecimento à sociedade por meio dos profissionais que forma e prepara, enquanto a pesquisa oferece novas soluções em serviços e tecnologias. A extensão universitária, por sua vez, distingue-se por ser uma ação direta: permite à universidade compartilhar conhecimento diretamente com a sociedade, disseminando tanto o saber produzido e acumulado ao longo dos séculos quanto as formas mais recentes e avançadas de resolver problemas que demandam conhecimento especializado.
12.Contudo, mais do que entregar conhecimento à sociedade, a extensão permite construir esse conhecimento em parceria com a sociedade. Em outras palavras, as atividades de extensão operam como uma via de mão dupla: enquanto ensina, também aprende com os interesses, necessidades e saberes populares. Nessa interação entre a universidade e as comunidades populares, a primeira absorve da segunda os interesses, práticas, necessidades e saberes que desconhece. Esse intercâmbio ajuda a calibrar e aprimorar suas próprias ações, contribuindo, assim, para o desenvolvimento do conjunto da sociedade.
13.Essa relação resulta em um aprendizado mútuo e no aprimoramento social da compreensão da vida e do mundo. A partir desse entendimento recíproco, busca-se dirimir problemas sociais, desenvolvendo soluções eficazes, duradouras e de alcance amplo.
14.O conjunto de problemas que o PROCAES se dedica a encontrar soluções, com as comunidades, são aqueles que envolvem grande esforço de compreensão e longos períodos de dedicação. Trata-se de problemas de natureza estratégica, problemas que só podem ser enfrentados com o domínio da ciência e da arte da Estratégia e o desenvolvimento de suas capacidades.
Para quem quer se soltar
Invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento Lua nova a clarear
Invento o amor
E sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir
Eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um Saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar
[Cais, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos]
15.A sigla “PROCAES” condensa dois significados numa única expressão. Por um lado, é o acrônimo do Programa para o Desenvolvimento de Capacidades Estratégicas – PROCAES. Por outro, de forma mais sutil, faz alusão à noção de Estratégia por meio da metáfora do “cais”. Não se busca um cais literal, mas um destino: uma nova posição (em um seguimento cultural, nicho de mercado ou setor social), uma nova situação (econômica, tecnológica, social, política ou cultural). O cais simboliza um dos aspectos mais conhecidos da Estratégia: a definição de uma meta, um objetivo distante que se almeja alcançar. Esta metáfora que inspira e norteia o programa, estando presente em sua logomarca, seus métodos e serviços.
16.PRO-CAES, no português falado, remete à contração de “para o cais”, em que a preposição “para” mais o artigo “o” se transformam em “PRO”; e em que a letra “e” de “CAES” sofre a inflexão fonética para o som de “i”, o que faz soar “cais” quando se fala. Assim, o programa se inspira na metáfora de quem procura um cais, preparando as(os) novas(os) líderes para imaginar um novo destino e as “rotas” que levam a ele (reflexão sobre a dialética entre meios e fins), dirigindo-se ao objetivo final daqueles que se aventuram em ir “pro cais”.
17.Da metáfora à realidade: embora a Estratégia possa ser aprendida e desenvolvida por qualquer pessoa e grupo social, ainda é pouco conhecida do público em geral. Além disso, tampouco se observa uma cultura favorável ao exercício desta atividade nos países da América Latina e do Caribe. Por essas e outras razões, o PROCAES projeta-se como uma iniciativa singular, oferecendo serviços desenhados de forma diferenciada para preparar líderes e grupos para o exercício do poder.
18.O aprendizado e a execução da Estratégia, bem como o desenvolvimento de capacidades estratégicas por indivíduos e grupos sociais, têm origem histórica como uma atividade exclusivamente bélica e militar. Desde sua origem, a Estratégia foi um tema privilegiado dos “sábios generais”, responsáveis por liderar as guerras de seus povos, reinos e estados. Em meados do século XX, as Ciências da Administração incorporaram a perspectiva militar à organização industrial e à execução da estratégica, de forma tão eficaz que, atualmente, os próprios meios militares aprendem com os conhecimentos desenvolvidos no âmbito civil. Desde então, há uma interação constante entre civis e militares, que colaboram para repensar e aperfeiçoar a arte e a ciência da Estratégia.
19.A equipe do PROCAES é formada exclusivamente por civis, composta por profissionais de diversas áreas de atuação e organizada de forma interdisciplinar. A base intelectual do programa, além da Estratégia, está nos Estudos Estratégicos Internacionais, campo voltado para compreender e solucionar problemas de grande envergadura no tempo, no espaço (nacional e internacional) e em diferentes níveis de complexidade (multissetorial e plurissocial). Esses desafios exigem um enfoque que seja simultaneamente amplo, dinâmico e rigoroso.
20.Dada a natureza abrangente dos temas e problemas abordados, os Estudos Estratégicos possuem como uma de suas características a interação com os mais diversos tipos de saberes, do popular ao acadêmico. No âmbito acadêmico, o campo dialoga com disciplinas tão variadas quanto as Ciências Sociais, as Ciências da Natureza e a Tecnologia. Muitas vezes, parte-se diretamente de áreas como a Ciência Política, a Ciência Militar ou a Estratégia. Contudo, o trabalho se expande naturalmente para horizontes mais amplos, envolvendo áreas como a Geografia, o Direito Internacional, a Filosofia, o Design, a Biologia, áreas aplicadas como Medicina e Engenharias.
21.O PROCAES reflete essa abordagem interdisciplinar em sua atuação, sendo desenvolvido por profissionais que adotam uma perspectiva abrangente e criteriosa. Além disso, o programa apresenta dois diferenciais que merecem destaque.
22.O primeiro consiste na forma como o PROCAES aborda seus temas, unindo Ciência e Arte. Por uma e outra, pelas Ciências Sociais ou pelas Ciências da Natureza e Tecnologia, de modos diferentes, se pode chegar à mesma realidade. Pela reflexão da filosofia estoica de Sêneca (veja a citação no quadro acima) ou pela canção de Milton Nascimento (leia a letra e escute a música no canto superior direito) temos a exata noção de que a Estratégia é uma imagem densa, um projeto, um sistema composto por uma visão do todo, meios, caminhos, opções, escolhas, recursos, aspirações, capacidades, sonhos, valores, iniciativas, inventividade, riscos, solidão e decisão coletiva de o quê, como, de onde e para onde, quando e em quanto tempo chegar ao cais (destino), a algum lugar ou situação. Estimular a formulação de caminhos, procurar fugir do caos social e mental e empreender a busca por um “cais” social, num projeto sistêmico. Será através da Arte que também chegaremos à realidade sobre a qual intervém a Estratégia. Ela própria ciência e arte.
23.O segundo diferencial está no público-alvo do PROCAES. A prática de formular e executar uma estratégia, a atividade do exercício do poder, está, historicamente, restrita a altas esferas de Estados e de governos (dominantes no plano doméstico e no plano internacional) e de grupos dominantes socialmente e suas elites. Mundialmente, os formuladores e executores de estratégias são – quase sem exceção e em sua esmagadora maioria – indivíduos do gênero masculino, brancos, ou particularmente anglo-saxões, em termos étnico-raciais. Ao largo do século XX e XXI, além dos círculos mencionados, o exercício do poder eficaz concentra-se também nos grandes monopólios empresariais transnacionais de países desenvolvidos, sem, contudo, ultrapassar esses círculos restritos dominantes (econômica, cultural, geracional, em termos de gênero, social e racialmente). A proposta do PROCAES, em contraste, busca democratizar o conhecimento e a prática da Estratégia, promovendo seu acesso a grupos sociais diversos, superando as barreiras econômicas, culturais, de gênero e raciais que tradicionalmente limitam o exercício do poder por esses grupos subalternizados.
24.A Estratégia, historicamente concentrada nos grupos socialmente dominantes, é uma capacidade poderosa que o PROCAES busca democratizar, compartilhando esses conhecimentos com as populações que mais precisam e se beneficiariam dela. Pois a ausência de condições para exercer o poder é um dos principais fatores que perpetuam as desigualdades sociais, dentro e entre os países. Por isso, o PROCAES concentra esforços na América Latina e Caribe, uma região que carece urgentemente de orientação coletiva e de lideranças estratégicas capazes de transformar realidades comunitárias, nacionais e regionais. O público-alvo do programa são jovens entre 16 e 35 anos, com ou sem educação formal, incluindo aqueles recém-formados ou em formação no ensino médio, técnico, profissionalizante e universitário. O PROCAES dedica-se, prioritariamente, a jovens de baixa renda, trabalhadores, pequenas(os) empreendedoras(es) populares, pessoas subempregadas ou desempregadas, marginalizadas, deficientes, mulheres, pessoas negras, indígenas, e membros da comunidade LGBTIQIA+, que aspiram transformar sua condição social e seu entorno, com soluções fundadas em conhecimento, em todo nosso território.
25.Em resumo, o PROCAES é um programa de extensão universitária, organizado de forma coerente e sistematizada, com origem em uma universidade pública e sem fins lucrativos. Seu objetivo é compartilhar, de forma altruísta e desinteressada, conhecimentos e habilidades estratégicas com um público amplo, apoiando a formação de lideranças e o desenvolvimento de iniciativas transformadoras que possam enfrentar os graves problemas sociais e, ao mesmo tempo, aproveitar novas oportunidades nas sociedades latino-americanas e caribenhas. Procura desenvolver os elementos objetivos e subjetivos da realidade social e do exercício do poder, da capacidade de formular uma estratégia, executá-la, e exercer as capacidades criadas. Em suma, o PROCAES visa informar, formar, refletir, pensar e atuar sobre as capacidades estratégicas que permitam aos indivíduos, grupos sociais, povos, países e territórios na América Latina e Caribe viverem uma vida substantivamente plena no atual estágio de desenvolvimento tecnologizado e mundializado das nossas sociedades.
A balsa muisca representa a cerimônia de investidura do poder dos líderes chibcha-muiscas, povos originários que habitam a região central da Colômbia. Peça em ouro feita entre 600 e 1600 da era cristã, sob guarda do Museu do Ouro, Bogotá, Colômbia. Foto: Diogo Pereto, 2023.
26.A humanidade, desde seus primórdios há 200 mil anos, aspira ou precisa viver em condições qualitativamente melhores que as imediatamente encontradas. Aspirações e necessidades sempre foram diversas na História. Porém, a mais importante delas envolve a necessidade de sobrevivência em relações de competição entre grupos humanos. O que envolve sempre o exercício do poder, de capacidades, sobre outros seres humanos e suas instituições, em relação aos territórios, aos recursos (água, alimentos, ferramentas, propriedade, capital etc.). As aspirações cada vez mais sofisticadas e as necessidades cada vez mais complexas no curso da História fez e faz com que um conjunto de conhecimentos e habilidades sejam necessários para transpor grandes desafios que vão surgindo na realidade: a Estratégia.
27.A Estratégia é a capacidade humana determinante de que se faz uso para transformar aspirações, necessidades e vontades em realizações, que demandam prazos médios e longos, e que não há outra maneira de realizar-se sem ela. De modo propedêutico, à guisa de introdução, a Estratégia é a elaboração do plano, da organização humana e dos recursos para, através de um processo, tornar possível o que se quer, sem se esquecer ou sem se perder enquanto tenta realizá-la.
28.A Estratégia é uma capacidade, um recurso do pensamento e da ação, da consciência e da conduta prática que permite fazer possível as coisas difíceis. Ela permite perceber na realidade caminhos possíveis de causas improváveis. Indo além da percepção, ela indica a maneira possível de conduzir as ações para alcançar o que parecia impossível ou mesmo improvável. As capacidades estratégicas nos permitem ser realistas para exigir e extrair da realidade o supostamente impossível.
29.Contudo, a Estratégia não é mágica nem uma prática milagrosa. Pelo contrário, sendo um esforço consciente, ela fortalece especialmente aqueles que, por qualquer razão, se sentem incapazes de mudar suas circunstâncias ou acreditam, de forma ingênua, que o futuro será melhor sem qualquer iniciativa. A Estratégia atenua soluções irreais e desmistifica explicações mágicas, combatendo a sensação de impotência diante dos problemas do mundo. Ela diminui a alienação subjetiva, que faz com que as pessoas deleguem o controle de seus futuros a terceiros. Com a Estratégia, homens e mulheres podem recuperar o protagonismo em suas vidas, tornando-se verdadeiramente responsáveis por seus destinos.
30.Nem sempre o resultado é certo. Uma das características da Estratégia é lidar com o nível de confiança e o grau de incerteza de uma visão ou projeto. Muitas vezes, a formulação da Estratégia dá mais certeza a um projeto e inspira mais confiança a seus executores para realizá-lo, fazendo que o projeto ganhe dimensões e contornos de excelência. Outras vezes, a Estratégia oferece a diminuição das incertezas. Outras, é indicar um caminho que continua incerto, mas que sem ela sequer poderia ser explorado.
31.E situações em que a Estratégia opera como uma forma de “experimentação”, surge uma de suas funções mais valiosas: ser um instrumento de aprendizado, de correção de rumos e reformulação da Estratégia. Ela assegura o acúmulo de memória, gera conhecimento sobre si e sobre o ambiente, criando bases mais sólidas para novos e necessários recomeços.
32.A Estratégia é essencial para definir a escala de uma mudança: saber se ela deve ser limitada ou de grandes proporções. Muitas vezes, possibilita identificar a causa oculta de um problema que antes era incompreensível. Ela também permite calibrar entre uma ação gradativa, uma reforma ou uma transformação abrupta e disruptiva; orientando o tipo de intervenção necessária – seja ela branda e diplomática ou firme e decidida. A Estratégia desempenha um papel crucial na definição dos rumos das sociedades e nações, na criação de cenários tão diversos como os da Paz e da Guerra, do bem-estar ou a desigualdade, da democracia e da ditadura, do fracasso e do sucesso, da ascensão e do declínio de grupos de indivíduos, instituições, povos e nações.
“A razão pela qual cometemos erros é porque consideramos as partes da vida, mas nunca a vida como um todo. O arqueiro deve saber o que ele está tentando atingir; então deve apontar e controlar a arma por sua habilidade. Nossos planos malogram porque não têm objetivo. Quando um homem não sabe a qual porto ele está indo, nenhum vento é o vento certo.” (Sêneca, Carta LXXI, 2-3)
33.Vontades, aspirações, visões, projetos ou necessidades urgentes, de proporções médias ou grandes. A Estratégia é o meio de realizá-las. Sua utilidade está em ser a capacidade que torna possível outras capacidades; é a capacidade-mãe. Assim, desde encontrar “um rumo na vida” relativamente estável, até abrir ou transformar um negócio, alcançar uma nova situação (econômica, social, política, cultural), realizar grandes empreendimentos (corporativos ou sociais), transformar países, nações e sociedades, queira-se ou não, a Estratégia deverá estar sempre presente para o êxito das coisas difíceis de fazer. Há casos em que sua presença se faz perceber por sua ausência, que é a pior das situações.
34.Em termos um pouco mais precisos, técnicos, a Estratégia é, ao mesmo tempo, uma ciência e uma arte. Requisito para o exercício do poder eficaz, ela permite a condução planejada e harmônica da ação política de conjunto, cujo fim é adquirir/conquistar, garantir/consolidar, manter/preservar vantagens em relações e posições de poder sobre aliados, concorrentes, adversários e inimigos.
35.Grosso modo, de maneira até esquemática, pode-se dizer que, enquanto ciência, a Estratégia implica calcular as iniciativas e medidas necessárias a serem tomadas, da motivação e dos recursos avaliados e mensurados como necessários e/ou suficientes para alcançar o objetivo final. Enquanto uma arte, a Estratégia usa a intuição, a sensibilidade, a experiência acumulada, a ousadia, a intrepidez, a coragem e outros elementos subjetivos que são fatores diferenciadores da ação.
36.Nesse contexto, a estratégia torna-se um instrumento mediador entre o pensar a realidade e a ação concreta. Isto é, a estratégia é a categoria mediadora entre uma teoria social (percepção/interpretação da realidade) e práxis social (ação). O conhecimento da situação (global e sintético) advém da própria teoria e deve deixar mais ou menos claro aos agentes pelo menos: 1) a natureza do seguimento, setor, sociedade, país, região; 2) suas potencialidades e possibilidades de ajustes ou alterações profundas dessa natureza e as principais tendências de desenvolvimento; 3) as forças que controlam o seguimento, setor, sociedade, país, região, sua base de poder, a disposição ou capacidade de adaptar-se a novas situações.
37.A Estratégia, portanto, sempre é a condução das grandes operações da política, muitas vezes denominada no jargão dos estrategistas de a “grande estratégia” ou a “grande política”. O exercício das capacidades estratégicas exige de seus agentes, tanto homens quanto mulheres estrategistas, um conhecimento abstrato, não meramente empírico, refém da compreensão cotidiana baseada em opiniões e aparências. A Estratégia requer, até certo ponto e o quanto seja possível, o conhecimento sobre a realidade, no nível ontológico, do que realmente é. Bem conduzida, ela subsumi a tática e as operações à sua orientação, agindo de forma transformativa em vez de se conformar ou adaptar-se passivamente à realidade. Atualmente, a cultura do pragmatismo mais estreito e de visão curta nunca esteve tão forte e presente em todo o continente, nas operações cotidianas das empresas, em movimentos sociais, ou até mesmo no Estado, cegando totalmente o horizonte de ação dos sujeitos. Nesse contexto, qualquer menção à estratégia, com algumas exceções, não tem passado de mera retórica.
Manuela Sáenz (1797-1856), a Libertadora do Libertador (por salvar a vida de Simón Bolívar), coronela do Exército Equatoriano (grau póstumo), foi a principal mulher em liderar as guerras de independência na América Espanhola. Retrato de Marco Salas Yepes, 1960.
38.Numa palavra, precisam de Estratégia aqueles grupos de indivíduos, instituições, organizações, sociedades e nações que se defrontam com as dificuldades mais complexas e desafiadoras, que demandam dispêndio de recursos, vontade e esforço durante um tempo que não é rápido, curto e imediato. Precisam de capacidades estratégicas indivíduos e grupos sociais que aspiram mudar efetiva e substancialmente a situação que se encontram, alterar o status quo.
39.Para agravar a situação, as pessoas, as pequenas empresas, as sociedades e nações mais pobres e repletas de deficiências, que, paradoxalmente, mais precisam, são as que menos dispõem de capacidades estratégicas. Afinal, as nações ricas, os grupos de poder da sociedade, através de suas elites, desde há muito, conhecem, dominam e aplicam as noções de estratégia para melhorarem sua própria condição de vida, ainda que à custa do bem-estar de tantos outros.
40.As grandes corporações transnacionais, nações ricas e poderosas, dispõem de complexos sistemas de elaboração estratégica. Realmente são sistemas: dispõem de centros de formação, treinamento e capacitação de estrategistas; centros de pesquisa e formulação estratégica, convencionalmente conhecidos como think tanks (não por acaso o termo conhecido é em inglês, já que a dominância estratégica no mundo segue sendo anglo-saxã), tão plurais e diversos como interconectados em suas alocuções reflexivas; múltiplos centros decisórios e órgão governamentais para formular, aplicar e controlar a estratégia. Não há apenas núcleos, mas sistemas articulados de ação estratégica de grupos e nações (auto)privilegiadas.
41.O (auto)privilegiamento de grupos, monopólios empresariais e países socialmente dominantes aprofunda as desigualdades econômico-sociais, educacionais, culturais e de poder nas comunidades da América Latina e do Caribe. Tais grupos dominantes exercem suas capacidades estratégicas, cada vez mais, para garantir um mundo seguro em detrimento de um mundo angustiante, incerto e inseguro para a maioria da população.
42.Só serão capazes de alterar essa situação quando as próprias comunidades dos países latino-americanos e caribenhos tomarem a iniciativa estratégica de vencer esta situação. Serão as mulheres, populações e nações indígenas, comunidades negras, periféricas, pequenas empresas familiares, pequenos(as) empreendedores(as), organizações e movimentos do povo que mais precisam de estratégia e de desenvolver suas capacidades estratégicas. São os grupos sociais, povos e países subalternizados que, organizados para vencer, superarão a angústia da realidade presente, forjando novos futuros e vivendo novas esperanças.
43.O trabalho do PROCAES é contribuir para a construção de uma estratégia de esperança para as comunidades atendidas pelo programa. Como discorremos até aqui, o PROCAES está balizado no escopo mais amplo de desenvolver as capacidades estratégicas de indivíduos e coletividades, usando os recursos das ciências e das artes para potencializar essa finalidade, colocando à disposição da sociedade todo o arsenal cultural, artístico e científico sistematizado da universidade. Com as comunidades, buscamos compreender seus problemas, interesses, valores e saberes, sistematizando-os ao corpo de conhecimentos universais e fomentando seu crescimento, desenvolvimento e potencialização.
44.A Fase I do PROCAES, a primeira edição deste programa de extensão universitária, está dedicada a criar as condições elementares para fomentar com solidez o desenvolvimento de capacidades estratégicas. Para atender a este objetivo, foram criados quatro projetos que configuram a fase atual do programa:
– Criar uma plataforma digital bilíngue (português e espanhol) para armazenar e dar acesso ao acervo sobre temas estratégicos, bem como divulgar questões de interesse estratégico das comunidades da América Latina e do Caribe;
– Criar um acervo digital de mapas, documentos, obras e biografias de lideranças e processos estratégicos das comunidades envolvidas, com a finalidade de preservar, sistematizar e manter a memória social de suas experiências socioespaciais;
– Realizar cursos de análise política;
– Organizar oficinas e eventos culturais e esportivos (mostras de filmes, palestras, caminhadas de observação de territórios relevantes) sobre temas que abordem e despertem o interesse geral em assuntos e questões estratégicas.
45.A fase atual do programa ainda dá ênfase ao desenvolvimento:
– da capacidade de pensamento analítico-sintético, crítico, criativo, complexo e de longo prazo, contribuindo para o desenvolvimento de lideranças nas comunidades com capacidade de reflexão global, ajudando na identificação de problemas e soluções, e que sejam aptas a formular estratégias, programas e projetos de desenvolvimento local, nacional, regional e internacional, para a autonomização das comunidades;
– de uma opinião pública sensível aos problemas estratégicos de classes e grupos sociais marginalizados e subalternizados (indígenas, negros, sem-terra, sem-teto etc.), organizações, instituições, cidades e países da América Latina e do Caribe, bem como aos problemas internacionais estratégicos de cooperação e integração regional;
– de atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação, incentivando a formalização e o crescimento de micro, pequenas e médias empresas.
Diogo Pereto, Coordenador do PROCAES